O trabalho necessário à manutenção da vida não é distribuído de maneira neutra, mas estruturado por dinâmicas históricas que articulam gênero, raça e classe. A organização social do cuidado não apenas reflete desigualdades estruturais como opera ativamente na sua reprodução. No Brasil, essa lógica tem raízes profundas em uma formação social assentada na exploração do trabalho das mulheres negras, desde o período escravista até as expressões contemporâneas da precarização laboral e social.
Discutir o cuidado implica reconhecê-lo como trabalho indispensável, contínuo e socialmente necessário, embora historicamente naturalizado como responsabilidade feminina e racializado como atribuição das mulheres negras.
Essa naturalização invisibiliza sua centralidade na reprodução da força de trabalho e na sustentação da vida cotidiana. Enquanto a esfera produtiva é reconhecida, remunerada e contabilizada, a esfera reprodutiva permanece marginalizada, sustentando de forma silenciosa o funcionamento da sociedade e da economia. Tal invisibilização ocorre de modo racialmente desigual: ao longo de séculos, hierarquias raciais destinaram às mulheres negras a parcela mais pesada, contínua e desvalorizada do trabalho doméstico e de cuidados.
Como indica Hirata, a divisão sexual do trabalho nunca operou de forma isolada no contexto brasileiro; ela sempre esteve atravessada pela raça. Historicamente, mulheres brancas transferiram grande parte das tarefas reprodutivas para outras mulheres — majoritariamente negras — que sustentam suas vidas e a de suas famílias sob condições de profunda desigualdade. Essa relação não foi superada com os avanços jurídicos e formais de direitos; ao contrário, atualiza-se na informalidade, na precarização e na ausência de políticas públicas que garantam proteção social.
Assim, a definição de “quem cuida” não decorre de escolhas individuais, mas de posições estruturais.
Compreender o cuidado como trabalho implica reconhecer sua função central dentro da lógica econômica. Alimentar, limpar, educar, acompanhar e garantir saúde constituem atividades que possibilitam a própria existência da produção. O cuidado, portanto, não é um resíduo da vida social, mas seu alicerce. Contudo, por ser majoritariamente realizado por mulheres negras, segue sendo tratado como extensão natural do corpo feminino e como disponibilidade infinita das mulheres racializadas. Essa concepção opera como engrenagem de exploração, assegurando à sociedade um volume significativo de trabalho não remunerado ou sub-remunerado.
Nos últimos anos, especialmente sob o avanço das políticas de austeridade fiscal, do desmonte de programas sociais e da retração do Estado, esse quadro se agravou. A insuficiência crônica de creches, de escolas de tempo integral e de serviços de atenção à saúde mental e à pessoa idosa desloca para os lares responsabilidades que deveriam ser públicas. Essa privatização da reprodução incide majoritariamente sobre as mulheres — e, entre elas, de forma mais intensa sobre as mulheres negras —, que acumulam jornadas, conciliam trabalho remunerado e não remunerado, sustentam múltiplas gerações e enfrentam condições socioeconômicas adversas que limitam o acesso à terceirização do cuidado.
A pandemia de covid-19 aprofundou esse cenário com medidas de contenção que restringiram de forma significativa o acesso da população — sobretudo a mais empobrecida — a esses serviços, afetando com maior intensidade as mulheres negras. Mesmo após o fim do isolamento, vários programas foram descontinuados, seja por razões orçamentárias — como a vigência da Emenda Constitucional 95/2016, a chamada “PEC do Teto de Gastos” ou “PEC da Morte”, do período Temer —, seja pelo descaso e negacionismo do governo federal à época, sob o comando do ex-presidente Jair Bolsonaro, lógica reproduzida em diversas regiões do país
A interrupção de serviços públicos ampliou abruptamente o volume e a intensidade das demandas de cuidado. As mulheres negras estiveram na linha de frente da sustentação da vida, cuidando de crianças sem escola, idosos isolados, familiares adoecidos, vizinhos e redes comunitárias, enquanto enfrentavam perdas de renda, riscos sanitários elevados e precarização extrema. No período pós-pandemia, a sobrecarga não retornou aos patamares anteriores: manteve-se ou aumentou, pois diversas atividades assumidas pelas famílias não foram reabsorvidas pelo Estado.
Nesse contexto, os dados da pesquisa Sem Parar 2025 evidenciam a materialidade da sobrecarga, a racialização do cuidado e a persistência das desigualdades estruturais. Eles se inscrevem em uma história longa que define quem cuida, quem é cuidado, em quais condições e com quais recursos — ou na ausência deles. Assim, a leitura dos números deixa de ser meramente descritiva e assume caráter crítico ao revelar como o cuidado segue sendo distribuído, valorizado ou desvalorizado no país.
Um dado importante é o de que 30% das mulheres entrevistadas se dedicam mais aos trabalhos domésticos e de cuidado agora do que durante a pandemia. Entre elas, 54,3% são negras e 45,16% são brancas, indicando a permanência da divisão sexual e racial do cuidado. Entre as 25% que relataram diminuição do tempo dedicado a essas atividades, à distribuição racial os percentuais são equânimes (49,72% de mulheres negras e 50,16% de brancas).
Embora esses percentuais possam sugerir avanços, a análise abrangente revela que a redução não alcança de forma significativa as mulheres em maior situação de precariedade — especialmente as negras. É relevante destacar que, entre as mulheres que relataram diminuição da carga de cuidados, 17,58% afirmaram que parte das tarefas passou a ser desempenhada por outra pessoa de forma remunerada. Desse grupo, 64,78% são mulheres brancas, enquanto 35% são negras. O dado evidencia a histórica transferência do trabalho de cuidados entre mulheres — sobretudo de brancas para negras —, que se mantém devido à estrutura escravocrata e colonial que ainda orienta as relações de trabalho no Brasil.
Para as mulheres negras, as razões para o aumento ou a diminuição da carga de cuidados estão profundamente vinculadas ao acesso — ou à ausência dele — a equipamentos públicos, como creches, escolas, centros de referência de assistência social, lavanderias e restaurantes populares. Esses serviços têm papel central na organização do cotidiano dessas mulheres, sobretudo das que vivem em maior precariedade. Quando estão disponíveis e funcionam adequadamente, tais serviços oferecem um suporte indispensável. Quando são insuficientes ou inexistentes, a sobrecarga de cuidados é aprofundada.
Por outro lado, a maior parcela das entrevistadas (44,96%) afirmou que a dedicação ao cuidado permaneceu inalterada após a pandemia; nesse grupo, 54,87% são mulheres negras. Isso sugere rotinas de cuidado constantes, possivelmente vinculadas à ausência de redes de apoio, ao acesso limitado a empregos formais, à flexibilização das relações laborais e às condições socioeconômicas que dificultam a terceirização das tarefas.
Nesse cenário, a possibilidade de compartilhar as tarefas de cuidado torna-se essencial para as mulheres, pois oferece — ainda que de maneira parcial e frequentemente precária — algum nível de apoio para o trabalho de cuidados. Entre as mulheres negras, cerca de 30% afirmam dividir essas tarefas com homens, enquanto 55,16% as compartilham com outras mulheres. Observa-se que a maior parte delas (63,69%) divide o trabalho de cuidados com outros moradores do domicílio. Além disso, 63,02% contam com o apoio de vizinhos, 54,70% compartilham essas responsabilidades com os filhos e 53% recebem ajuda de amigos que não residem no domicílio.
Dois aspectos se destacam nesse contexto. O primeiro é a presença expressiva da vizinhança na rede informal de apoio ao trabalho de cuidados das mulheres negras. Essa dinâmica, comum sobretudo entre mulheres de baixa renda, revela formas de solidariedade construídas no interior das comunidades, onde se estabelecem vínculos cotidianos de cooperação. O segundo aspecto evidenciado pela pesquisa é que essa rede de apoio e solidariedade é composta majoritariamente por outras mulheres. Entre as pessoas que auxiliam as mulheres negras no trabalho de cuidados não remunerado, 80,12% são parentes residentes no domicílio, 69,69% são filhas, 79,58% são amigas e 95,37% são vizinhas.
Assim, embora exista uma rede de apoio informal, a responsabilidade pelo trabalho de cuidado permanece concentrada nas mulheres, seja nas relações familiares, de amizade ou de vizinhança, reforçando a persistência da divisão sexual e racial do trabalho. Nesse cenário, o acesso às políticas públicas torna-se um fator decisivo, pois traz suporte essencial para famílias em situação de vulnerabilidade, contribuindo de maneira significativa para mitigar a sobrecarga cotidiana que recai sobretudo sobre as mulheres.
Nesse cenário, é fundamental reafirmar a responsabilidade do Estado na garantia do cuidado como um direito, que não pode ser delegado ao mercado. As alternativas para a socialização do trabalho de cuidados devem ser construídas de forma coletiva, e não individualizadas. As mulheres negras não podem continuar assumindo, de maneira isolada e não remunerada, o trabalho de cuidado imposto pela divisão sexual e racial do trabalho.
Por essa razão, a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras, que saiu às ruas de Brasília em novembro de 2025, coloca no centro de sua pauta a agenda de reparação e a luta pelo bem viver. Essa perspectiva confronta as diversas formas de opressão que estruturam a sociedade brasileira. Trata-se de uma intervenção estratégica e fundamental no cenário político contemporâneo, sobretudo porque, uma década após sua primeira edição, a Marcha retorna às ruas reafirmando a centralidade das mulheres negras na luta por justiça social, pela defesa da democracia e pelo enfrentamento incisivo do racismo estrutural.
No horizonte político da Marcha das Mulheres Negras, o bem viver é inseparável da reorganização dos trabalhos de cuidado desempenhados por mulheres negras, tanto nos espaços remunerados quanto nos não remunerados. Sob essa perspectiva ampliada, o cuidado ultrapassa as atividades cotidianas e domésticas: abrange o autocuidado, o fortalecimento das comunidades, a produção de redes de solidariedade e a afirmação da vida como valor político. Assim, o cuidado é ressignificado como prática coletiva, crítica e emancipatória, que denuncia a desigual distribuição dessas tarefas e reivindica novas formas de sociabilidade baseadas na justiça, na vida digna, sem patriarcado e sem racismo.
*Raquel Viana é militante da Marcha Mundial das Mulheres e do Movimento Negro Unificado.