O que sustenta a vida quando as tramas do trabalho e do cuidado se esgarçam ou mesmo se rompem? Quem, sobretudo, cuida das vidas – todas as vidas – em meio a um mundo em ruínas? Nos últimos tempos, temos vivido entre colapsos e crises sistêmicas: crise sanitária (como a pandemia da covid-19), ambiental, econômica, ética e política. Por isso, urge dar a conhecer mais e melhor os processos que sustentam a trama do trabalho e dos cuidados, bem como os impactos à saúde e à subjetividade de seus sujeitos primordiais, as mulheres.
As análises das respostas à Pesquisa Sem Parar 2025 – O que mudou na vida das mulheres brasileiras, 5 anos depois da pandemia? sugerem dimensões subjetivas acerca da sobrecarga e do adoecimento relacionadas à confluência entre os trabalhos desempenhados pelas mulheres: produtivo e reprodutivo1 — doméstico e de cuidados, atividades necessárias para a sustentabilidade da vida, como defendem as economistas feministas.2
Uma realidade de sobrecarga
Foi notável o espelhamento, na pesquisa, da realidade brasileira de precarização do trabalho e da vida à qual as mulheres estão submetidas no atual modelo hegemônico, o capitalismo tardio e periférico, de corte neoliberal. Reafirma-se o conflito capital-vida, intensificado, principalmente, em relação à interseccionalidade, que toma em viva correlação raça, classe socioeconômica e território.3 Assim, expõem-se as condições impostas por esse sistema produtivo gerador de desigualdades sociais e divisões de trabalho excludentes, produtoras de violência, sofrimento e adoecimento.
O Brasil, em conjunto com os demais países da América Latina e do Sul Global, encontra-se historicamente impactado pelos efeitos da colonialidade.4 Por meio de noções ideológicas como “progresso” e “desenvolvimento”, impõem-se subjetividades e moldam-se saberes, práticas e formas de viver o trabalho e a vida social. Trata-se de um processo de dominação que reproduz condições de vida insalubres, tanto pela organização do trabalho, quanto pela degradação das dinâmicas sociais e ambientais que a ele resistem. Esse cenário desencadeia condições ideais para a perda de direitos e para a desvalorização de diversas categorias de trabalho vinculadas às formas tradicionais de produção e subsistência, como ocorre com a produção dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos.5
Com o advento da globalização e do neoliberalismo, formas de precarização do trabalho são atualizadas, colaborando para uma diminuição da oferta de empregos, precarização de vínculos de trabalho e desregulamentação de leis trabalhistas. Em conjunto, tecnologias são operadas a partir de uma lógica individualizante, que busca a desmobilização coletiva.6 Uma vez que o aparato estatal age a partir dessa lógica, os direitos trabalhistas e sociais são flexibilizados, havendo uma precarização das condições de trabalho e de vida e das políticas públicas, o que configura uma ameaça à saúde da população e, no caso desse estudo, das mulheres.
De forma a ilustrar esse cenário, os dados da pesquisa Sem Parar 2025 apontam que 57% das mulheres respondentes despendem entre 40 e 44 horas por semana para desempenhar suas atividades de trabalho, considerando o acúmulo de jornadas (trabalhos produtivo e reprodutivo), enquanto 16% das mulheres trabalham 45 horas semanais, sendo metade delas trabalhadoras negras. Ainda nesse cenário, há um contingente considerável de mulheres em condição de desemprego e de trabalho informal, bem como uma expansão do trabalho por aplicativos na área urbana, denotando o “progresso” de formas de precarização como a terceirização e a uberização.
O quadro pós-pandemia desencadeou mudanças no trabalho remunerado para 73% das mulheres, que passaram a trabalhar de forma remota. Por vezes, isso contribuiu para o aumento de suas jornadas de trabalho, sem que houvesse posterior diminuição. A renda, entretanto, não acompanhou esse quadro, uma vez que teve uma queda de 36%. Dentre essas mulheres, destacamos que 22% são negras e 13% estão em condição de desemprego.
No que se refere ao trabalho doméstico não remunerado, mais de 40% das entrevistadas são as únicas responsáveis por ele e pouco mais da metade compartilha essa responsabilidade com outras pessoas. Das mulheres que compartilham tarefas, 56% o fazem com homens, que realizam atividades pontuais, como lavar a louça, fazer compras e pequenos reparos ou manutenções no domicílio. O acúmulo de tarefas é agravado para mulheres negras.
O trabalho de cuidados segue o mesmo padrão dos anteriores. Apesar da maioria compartilhar esse trabalho com outras pessoas, 45% das mulheres realizam a maior parte dele. A maioria das mulheres não é remunerada para o desempenho desse cuidado que é, de modo geral, dedicado a crianças e idosos do próprio núcleo familiar.
Os dados acima confirmam, portanto, a precarização estrutural do trabalho não remunerado que corrobora a sobrecarga das mulheres. Isso evidencia o que Leny Sato7 traz como condições férteis para o surgimento da penosidade na experiência da pessoa trabalhadora. Trabalho penoso é um conceito advindo da Psicologia Social do Trabalho, que compreende a inter-relação entre a pessoa e a coletividade frente aos processos e condições de trabalho e de vida. A divisão social, racial e sexual do trabalho parte da já mencionada noção de interseccionalidade. Nesse sentido, a penosidade se configura como uma condição de trabalho que produz sofrimento físico e mental na pessoa trabalhadora de forma simultânea.8
A Psicologia Social do Trabalho, ao se debruçar sobre a Saúde Mental Relacionada ao Trabalho, busca uma compreensão integral acerca daquilo que é macro e microssocial na vida das trabalhadoras, levando em conta as dinâmicas de trabalho, mas também as complexidades dos processos decorrentes da vida e das atividades laborais. Ainda segundo Sato, as condições para que um trabalho seja considerado penoso envolvem falta ou perda de controle, poder de ação reduzido, ausência ou pouca familiaridade com as tarefas desempenhadas e, muitas vezes, a necessidade reiterada de ultrapassar os limites subjetivos para tolerar o trabalho e dar conta da rotina. No caso das mulheres, essa situação é agravada pela sobrecarga causada a partir do peso dessas jornadas múltiplas de trabalho.
Penosidade, cansaço e adoecimento
Sem que as trabalhadoras tenham controle ou poder de intervenção sobre a forma e a intensidade dos trabalhos que desempenham no cotidiano, e sendo reiteradas vezes obrigadas a ultrapassar os seus limiares subjetivos de dor física e/ou mental, o sofrimento se instaura e a penosidade toma corpo e afetos. Considerando a realidade de acúmulo de tarefas à qual são submetidas, essas mulheres passam a ter o direito de acesso aos cuidados de saúde dificultados, uma vez que a organização do tempo toma forma a partir do contexto da sobrecarga, ocupando o tempo de autocuidado.
Tal cenário se consolida de maneira oposta à noção de saúde postulada por Christophe Dejours, que a compreende como movimento e variabilidade, e não estabilidade. Segundo ele:
“o que não é normal é não poder cuidar dessa doença, não poder ir para a cama, deixar-se levar pela doença, deixar que as coisas sejam feitas por outro durante algum tempo, parar de trabalhar durante a gripe e depois voltar. Bem-estar psíquico, em nosso entender, é, simplesmente, a liberdade que é deixada ao desejo de cada um na organização de sua vida. E por bem-estar social, cremos que aí também se deve entender a liberdade, é a liberdade de se agir individual e coletivamente sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre o conteúdo do trabalho, a divisão das tarefas […] e as relações que mantêm entre si”.9
As mulheres são submetidas a continuarem o desempenho de suas atividades de trabalho em seus lares, mesmo que em sofrimento e/ou adoecidas. Os meios para a promoção do bem-estar encontram entraves concretos, impondo às mulheres a necessidade premente de continuar sem parar, dar conta das tarefas, de todas elas, às custas de agravos à própria saúde física e mental.
Nesse sentido, 60% das mulheres respondentes da pesquisa relataram cansaço e/ou dores físicas de forma intensa ou muito intensa. Essa foi, inclusive, a sensação apontada por elas como a maior causadora de sofrimento. O sentimento de insegurança surge em relação à falta de estabilidade: 45,1% das respondentes relataram insegurança intensa ou muito intensa. Dentre elas, as mulheres com renda de até três salários mínimos e em condição de desemprego são as que mais relatam se sentir vulnerabilizadas diante da instabilidade financeira.
No que tange à solidão, 36% delas relataram se sentir sós de maneira intensa ou muito intensa, sendo mais comum entre aquelas que realizam a maior parte do trabalho de cuidados e que são as únicas responsáveis pela realização do trabalho doméstico. As mulheres que auxiliam na mobilidade daqueles de quem cuidam são as que se encontram em maior sofrimento mental.
A vida comunitária como resistência à sobrecarga e ao adoecimento das mulheres
Na primeira edição da pesquisa, realizada em 2020, durante a pandemia de covid-19, o sentimento de maior intensidade relatado era o medo do futuro. Já em 2025, as mulheres evidenciaram a sensação de cansaço e/ou dores físicas. Isso leva a uma série de questionamentos: em que condições se dá a vida dessas mulheres? Tendo passado pelo período pandêmico, com todas as contradições e sofrimentos que ele suscitou e os desafios psicossociais que deixou em evidência, quais os meios que de fato temos para que o cuidado em saúde seja realizado?
A pesquisa responde a parte dessas questões ao evidenciar a potencialidade dos movimentos sociais e do cuidado comunitário. As mulheres que participam de movimentos sociais e de redes de cuidado comunitário apresentam menores níveis de solidão: 25,7% entre aquelas que participam de movimentos sociais e 28,3% entre as que encontram algum nível de cuidado em relações comunitárias. Nas respostas qualitativas, diversas se voltaram para a importância de ampliar políticas públicas de cuidado em saúde para as mulheres, mas elas vão além disso.
É notável que, mesmo em meio à sobrecarga e às condições precárias impostas pelo sistema socioeconômico atual, as mulheres tenham criado estratégias de resistência e enfrentamento que reconfiguram as tramas do trabalho e do cuidado da vida em bases coletivas, como evidenciam as economia solidária e feminista.10 Tais estratégias se expressam tanto nas lutas por direitos e pela ampliação das políticas públicas, quanto na criação de práticas comunitárias que buscam sustentar e defender a vida — todas as vidas — fora da lógica produtivista do capital.
Dada a centralidade do trabalho na (re)produção social em nossa cultura e sociedade,11 podemos dizer que ele tem tanto a capacidade de contribuir para a fragilização subjetiva e para o adoecimento das pessoas quanto de promover o (re)equilíbrio psíquico, a elaboração e o desenvolvimento da potência relacional e curativa. Conforme Dejours, o trabalho é o espaço de mediação entre o campo social e a economia psíquica.
O trabalho produtivo, nas condições hegemônicas, portanto, configura-se como um dos principais responsáveis pelo desgaste e sobrecarga na contemporaneidade, sobretudo das mulheres. Entre aquelas que declararam à Pesquisa Sem Parar 2025 exercer trabalho remunerado, 9,4% atuam de modo informal, sendo 3,7% brancas, 5,6% negras (pretas e pardas) e 0,06% amarelas. Desse total, 10,9% vivem com até um salário mínimo.
Em relação ao trabalho de cuidados, entre as mulheres respondentes da pesquisa, cerca de 48% cuidam de alguém sem qualquer remuneração, das quais 21,4% são brancas, 26,6% negras, 0,1% indígenas e 0,2% amarelas. A maioria delas cuida de crianças e idosos da própria família, sendo que 42% cuidam de filhos ou enteados e 22% de pai ou mãe.
O neoliberalismo, segundo Vergès, impõe sua cota de violência, camuflada, porém real, em nome da extração maximizada de lucro.12 Esse processo se desdobra nas chamadas dimensões subjetivas da desigualdade econômica. Assim, pensar os acessos e garantias proporcionados pelo poder aquisitivo permite compreender como essas dinâmicas moldam as condições de existência. Vincular cultura, solidariedade, trabalho e renda implica construir, de forma coletiva, práticas econômicas que emergem da valorização das expressões culturais próprias, fazendo com que a cultura se torne parte viva, resistente e concreta do cotidiano.
Ao discutir o trabalho reprodutivo como base estrutural que sustenta o mundo produtivo, teóricas da economia feminista destacam o papel central do trabalho doméstico e de cuidados. Paradoxalmente, a compreensão ideológica que se tem sobre cuidados – frequentemente associada a demonstrações de afeto e desejo – evidencia como essa atividade pode ser realizada de maneira naturalizada, isto é, afastada do reconhecimento social do fazer e daquilo que ele sustenta. Conforme Silvia Federici, o trabalho reprodutivo (doméstico e de cuidados) pode ser entendido na conjuntura contemporânea como “trabalho para o Capital”.13 Ou seja, embora não remunerado e socialmente desvalorizado e invisível, é essencial para produzir e reproduzir a força de trabalho necessária para alimentar o sistema capitalista.
Tal naturalização, por vezes biologicista, é funcional à manutenção de um sistema que se sustenta pela violência da dominação e das necropolíticas, que produz desigualdades estruturais per se, como formas de exploração de certas vidas em detrimento de outras. Segundo Vergès, o Estado, enquanto instância reguladora da dominação econômica e política, expressa a totalidade das opressões e explorações imperialistas, patriarcais e capitalistas. Compreender como essa lógica se estrutura permite revelar de que forma as experiências da vida são significadas e nomeadas, bem como compreender como o desgaste e a sobrecarga na vida das mulheres têm se constituído e se intensificado, impactando diretamente os processos de fortalecimento e de identificação coletiva.
Por ser uma atividade que se dá com o outro, para o outro e a partir dele, é fundamental refletir sobre quais vínculos e trocas sustentam o sentido e o significado e, portanto, a subjetividade e a saúde mental das mulheres no trabalho reprodutivo. Reconhecer as contradições e o papel da coletividade no conviver e habitar permite identificar práticas favoráveis à sustentabilidade da vida – com as outras e consigo mesma. Desse modo, cria-se um espaço de fortalecimento, ressignificação e potência compartilhada, como reflete Antônio Bispo, em A terra dá, a terra quer (2023):
Quando ouço a palavra confluência ou a palavra compartilhamento pelo mundo, fico muito festivo. Quando ouço troca, entretanto, sempre digo: “Cuidado, não é troca, é compartilhamento”. Porque a troca significa um relógio por um relógio, um objeto por outro objeto, enquanto no compartilhamento temos uma ação por outra ação, um gesto por outro gesto, um afeto por outro afeto. E afetos não se trocam, se compartilham. Quando me relaciono com afeto com alguém, recebo uma recíproca desse afeto. O afeto vai e vem. O compartilhamento é uma coisa que rende. (p. 36)
A reflexão de Bispo sobre o compartilhamento desnaturaliza e tensiona a lógica da troca capitalista e amplia o entendimento de coletividade enquanto prática que produz sentido, reciprocidade e permanência. Nesse horizonte, torna-se necessário compreender, de forma abrangente, as determinações sociais e históricas que atravessam esses processos e suas implicações em outras esferas da vida social.
Lukács (2012) observa que a falta de reconhecimento de uma forma comum de exploração contribui para consolidar relações de dominação subjetiva que se materializam na lógica capitalista.14 Essa lógica atribui às diversas dimensões da vida o sentido da produção e acumulação de capital. Em contraponto a essa lógica, pensadoras feministas propõe outras práticas e éticas, baseadas no conceito de sustentabilidade de vida, nas quais todas as vidas importam, devem ser cuidadas e protegidas. É o que se vê em Juntas e misturadas, da Colectiva XXK e da SOF Sempreviva Organização Feminista:
Ao falar de sustentabilidade da vida, fazemos referência a todos os processos, territórios e relações que regeneram tudo o que é vivo, a partir de uma compreensão da vulnerabilidade como condição fundamental da vida humana. A vida é uma potência, mas ela só ocorre se estabelecermos suas condições de possibilidade. A única forma de fazê-lo é no coletivo: não podemos viver em isolamento nem somos autossuficientes. A vida só é possível dando e recebendo cuidados, trabalhos, tempos, saberes, afetos… E, porque somos vulneráveis, dependemos umas das outras: a interdependência é uma condição básica da existência”.15
Essa dinamicidade no cotidiano influencia a maneira como o tempo, o território e os sentimentos são vivenciados e, consequentemente, a forma como os sentidos e significados atribuídos ao trabalho e à vida são constituídos a partir da realidade material. Refletir sobre a sobrecarga e o adoecimento das mulheres implica adotar uma compreensão ampla de seus determinantes. Para uma análise mais complexa que considere as repercussões psicossociais, é fundamental incluir as sensações que permeiam a realidade dessas mulheres. Um espaço de manifestação da experiência, um território de potência e pulsão – aquilo que quase se expressa objetivamente, mas que é constituído por aspectos subjetivos.
Thompson já destacava a importância da experiência para a discussão e a análise de dados, uma vez que, para compreendermos as respostas dos sujeitos, suas percepções sobre a realidade e a constituição de sua consciência social, é imprescindível considerar o contexto histórico e seus acontecimentos.16 Trata-se, portanto, de uma dimensão universal e coletiva da experiência. Nesse sentido, as respostas encontradas na pesquisa Sem Parar 2025 mostram como a vivência individual passa a revelar a experiência social das mulheres brasileiras. Simultaneamente, por meio da articulação entre as dimensões subjetiva e objetiva, emerge a possibilidade de constituição da consciência dessas mulheres em um único coletivo, que se materializa nos encontros comunitários e no sentido que eles adquirem. A pesquisa mapeia alguns desses sentimentos, entre eles a insegurança e a solidão, já apontados. Ambos corroboram para a sensação de sobrecarga, uma vez que implicam na experiência de não ter com quem compartilhar o peso das tarefas cotidianas.
A falta de uma rede de apoio que represente uma parceria coletiva, capaz de brindar identificação, pertencimento e proteção, pode representar uma condição de agravo à saúde dessas mulheres, posto que agudiza vulnerabilidades, próprias de quem se sente só e insegura frente às intempéries políticas de um mundo em ruínas: “cada um se encontra só, no meio da multidão, em um ambiente humano e social com características de hostilidade. A solidão e abatimento se instalam no mundo do trabalho e isso muda radicalmente o cenário no que diz respeito à relação subjetiva frente ao trabalho e à saúde mental” (Dejours, 2013, p.11).17
Além dos dados referentes à insegurança e à solidão, outras informações importantes da pesquisa emergem no tocante à dimensão afetiva. Quando questionadas sobre os sentimentos de confiança e realização, 18,8% das mulheres afirmaram sentir intensamente tais emoções, sendo 5,9% brancas, 12,9% negras, 0,01% amarelas e 0,04% indígenas. Um dos fatores que podem estar relacionados a essa significação positiva perante a realidade é a forma como a vida comunitária é vivenciada. Como vimos, entre as participantes da pesquisa, 48,3% afirmaram participar de movimentos sociais e 36,7% de iniciativas de cuidado comunitário. Dentre elas, as mulheres negras representam 58,8% nos movimentos sociais e 54% nas ações de cuidado.
A vida comunitária constitui-se como um espaço de encontros, identificações, potências e sensibilidades que se expressam no cotidiano. Considerando que todas as pessoas são sujeitos sociais e históricos, a constituição da vida ocorre sempre com outrem e a partir dele. Pensar a vida comunitária, portanto, pressupõe compreender que é somente nos espaços coletivos que é possível produzir reconhecimentos e vinculações, sementes vitais de todo processo de emancipação coletiva.
Refletir sobre essa dimensão é essencial para identificar estratégias de resistência, superação e cuidado diante da sobrecarga e do desgaste mental vivenciados pelas mulheres na atualidade. Olhar para a vida comunitária como potência e estratégia de enfrentamento do adoecimento implica compreender que esses movimentos estão enraizados em condições históricas, políticas, econômicas e sociais específicas.
O fortalecimento de espaços coletivos deve estar diretamente relacionado a toda estratégia de promoção de saúde e de enfrentamento das violências e desigualdades que sobrecarregam e adoecem as mulheres. Nesse sentido, é necessário problematizar também a propriedade privada e o modelo patriarcal familiocêntrico como elementos estruturantes de controle dos corpos e subjetividades, retornando a Federici. Ela também enuncia a potencialidade dos comuns, formas de organização social comunitária ancestrais, especialmente caras às mulheres, que se apresentam num só tempo como tecnologia e caminho de superação, de luta e resistência à lógica hegemônica que adoece e sobrecarrega os corpos, especialmente os feminizados e racializados. Afinal, mulheres sempre dependeram mais dos comuns e foram as mais comprometidas em sua defesa.
Conclusão
Procuramos refletir aqui a respeito da sobrecarga e do adoecimento das mulheres, a partir dos insumos da pesquisa. O estudo em questão é incontornável para a proposição de políticas de cuidado que visem mitigar os efeitos do sistema hegemônico atual sobre a saúde e a subjetividade de corpos feminizados e racializados. Nesse sentido, destacamos as potencialidades – ancestrais e futuras – da vida comunal comunitária. Compreendemos que a superação das formas de dominação aqui descortinadas passa pela valorização e reconstrução das relações sociais em bases comunais, essenciais para a emancipação e para o bem viver.
Nesse horizonte, é urgente recolocar as pessoas no centro da economia e a vida no centro da política, como propõem as pensadoras feministas. Isto implica deslocar o eixo de sustentação do sistema, retirando-o da exploração e da competitividade, à defesa da vida e da solidariedade. Trata-se de compreender o trabalho, o cuidado, a saúde e a cultura como dimensões inseparáveis da vida e, portanto, como campos de produção de sentido e de emancipação.
Construir anti-hegemonia exige reconhecer as potencialidades que emergem das entranhas e das margens dos territórios. É nas experiências comunitárias, nas economias solidárias, nos movimentos sociais e em suas práticas de cuidado compartilhado que se partejam modos de viver que não se organizam pela lógica da troca, mas pela reciprocidade; não pelo controle, mas pela confluência; não pela escassez, mas pela interdependência. A cultura de uma política de vida só pode germinar, afinal, em solo comunal.
1 FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução do Coletivo
Sycorax. São Paulo: Elefante, 2018.
2 CARRASCO, C.; DÍAZ, C. (Orgs.). Economia feminista: desafios, propostas e alianças. Madrid: Traficantes de Sueños,
2022.
3 CRENSHAW, K. On intersectionality: essential writings. New York: The New Press, Jan. 4 2028.
4 QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do
saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. pp. 117-142.
5 GARBIN, A. D. C.; ANDRADA, C. F.; GOMES, J. A. Saúde e bem viver alinhados com a sustentabilidade: contribuições
da economia solidária brasileira. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 50, 2025.
6 SATO, L; ANDRADA, C. F; ESTEVES, E. G; NÓBREGA, J. S. “Trabalhar para quê? Trabalhar como?” Relações Solidárias
para o enfrentamento da precariedade do trabalho e da vida, Laboreal, v.20 n.1, 2024.
7 SATO, L. A representação social do trabalho penoso. In: SPINK, M. J. P. (Org.). O conhecimento no cotidiano: as
representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 188-211.
8 PAPARELLI, R.; SATO, L.; OLIVEIRA, F.. A saúde mental relacionada ao trabalho e os desafios aos profissionais da
saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 36, n. 123,118–127, 2011.
9 DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez, 1998., p. 11.
10 NOBRE, M. Economía solidaria y economía feminista: elementos para una agenda. Revista Papeles de Economía
Solidaria, v. 4(, n. 1), 2015, pp. 01-24.
11 ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 3.ed. São Paulo: Boitempo,
2000.
12 VERGÈS, F. Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção. Tradução de Raquel
Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
13 FEDERICI, S. Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns. São Paulo: Elefante, 2022.
14 LUKÁCS, G. Para uma Ontologia do Ser Social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
15 COLECTIVA XXK, SOF Sempreviva Organização Feminista. Juntas e misturadas: explorando territórios da economia
feminista. São Paulo, 2021.
16 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
17 Dejours, C. (2013). A sublimação, entre o sofrimento e prazer no trabalho. Revista Portuguesa de Psicanálise, 33(2),
9-28.
*Cris Fernández Andrada é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e docente na Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) junto ao Departamento de Psicologia Social. Angelita Aguiar Oliveira e Laura Neri de Carvalho são graduandas em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estudantes do Núcleo de Relações de Gênero, Violência e Psicologia: Latinidades Insurgentes da PUC-SP e estagiárias da SOF Sempreviva Organização Feminista.