Cansadas, mas esperançosas: dados, perguntas e hipóteses sobre como cuidam as mulheres rurais

Entre as rurais, embora a família siga sendo o centro do recebimento e provisão do cuidado, destacam-se as instituições públicas e as iniciativas comunitárias.

Quem são as mulheres rurais da pesquisa

A amostra da Pesquisa Sem Parar 2025 contou com 9% de mulheres que moram na área rural, aqui chamadas de rurais. Essa proporção é inferior à relativa à população brasileira, de 13% em 2022, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar Contínua (PNADc) tratados e disponibilizados no projeto Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça do IPEA

As mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) colaboraram com o levantamento de informações e, embora sua inserção seja tanto rural quanto urbana, o peso de sua contribuição para a pesquisa pode ser sentida entre as rurais. Um exemplo é o fato de que as rurais que responderam à pesquisa participam mais do que as urbanas de movimentos sociais (65% das rurais e 46% das urbanas).

O Brasil é um país negro, e mais negro ainda no meio rural. Segundo o Censo Demográfico de 2022, aumentou o número de pessoas que se declararam pardas, passando a ser o maior porcentual de identificação racial. Segundo o projeto Retrato acima citado, 65% das mulheres rurais e 54% das urbanas eram negras (pretas e pardas somadas), proporção muito próxima à nossa amostra, que contou com 64% de negras entre as rurais e 52% entre as urbanas.

Em relação à escolaridade no Brasil, 37% das mulheres tinham ensino médio completo ou superior incompleto e 19% tinham superior completo ou mais, que se desdobram nas proporções de 36% e 26%, respectivamente para as mulheres brancas e 38% e 13% para as mulheres negras. Esses dados evidenciam as barreiras de acesso e permanência das mulheres negras nas universidades — o que podemos supor que seja ainda maior no caso das mulheres rurais. 

No entanto, entre as rurais respondentes da pesquisa Sem Parar 2025, 30% tinham nível superior completo e pós-graduação e, dentre essas, 42% eram mulheres negras. Esses indicadores positivos para as mulheres rurais apontam para a relação dos movimentos sociais com políticas e programas de ampliação do acesso à escolaridade formal, inclusive com a criação de cursos e metodologias próprias. Um exemplo é o dos cursos de Licenciatura em Educação no campo com pedagogia da alternância. Neles, as estudantes combinam períodos na universidade e períodos em suas comunidades. Em alguns cursos, são as professoras que se deslocam para a comunidade no período de aulas presenciais. Ainda que essas modalidades possam explicar a maior escolaridade superior entre as rurais, permanece a questão sobre a menor participação proporcional de mulheres negras e os desafios para seu acesso. 

Além disso, chama a atenção que a maior escolarização não se reproduziu em aumento da renda. Entre as rurais, 60% tinham renda familiar de até 1 salário mínimo, das quais 82% eram mulheres negras. Nessa faixa de renda estava a maior parte das mulheres rurais com ensino superior completo, enquanto a maior parte daquelas com pós-graduação estava na faixa entre 3 e 5 salários mínimos. Entre as rurais, 34% disseram contribuir com menos de 30% da renda familiar, enquanto 38% das urbanas afirmaram contribuir com mais de 80%.

No Brasil, as ocupações no meio rural vêm declinando, mas as mulheres, embora tenham sua participação pouco registrada, tiveram um aumento entre 2012-2022. Isso pode acontecer pelo aumento da consciência da profissão de agricultora — pois muitas tinham a profissão “do lar” registrada em seus documentos —, pelo alcance das políticas de apoio às mulheres na agricultura familiar, ou ainda em substituição dos jovens, que estão cada vez menos presentes no campo. 

As atividades agrícolas no meio rural e urbano e as atividades não agrícolas no meio rural têm rendimentos em torno ao valor do salário mínimo, bastante inferiores às atividades não agrícolas no meio urbano. As desigualdades de participação e rendimento entre os gêneros nas atividades agrícolas ainda são presentes, mesmo tendo diminuído no período de 2012-2022. As mulheres são mais presentes nas atividades não agrícolas, mas muitas vezes os rendimentos de diferentes fontes se combinam para o equilíbrio econômico da unidade familiar de produção. As diferenças nos rendimentos entre atividades agrícolas e não agrícolas são condicionadas pela valorização (ou não) do salário mínimo, pela posse da terra e pela educação, ainda que tenha havido redução dos retornos financeiros em educação para os indivíduos mais qualificados.1

O mercado de trabalho não responde aos esforços de incremento educacional das mulheres. As desigualdades de rendimentos persistem, em parte porque as profissões consideradas femininas são desvalorizadas, por serem associadas ao trabalho doméstico e de cuidados, que é realizado em sua maioria pelas mulheres, dentro de casa e de forma não remunerada. Muitas agricultoras não separam da produção remunerada aquela sob sua responsabilidade que pode ter como destino formas não monetárias, como o autoconsumo, doação e troca, e a venda. Tornar visível a contribuição econômica das mulheres rurais é uma tarefa permanente da economia feminista.2

Cuidado

Mulheres rurais e urbanas cuidam em primeiro lugar dos filhos. Em alta proporção também aparece o cuidado de pessoas adultas, saudáveis e sem dependência. Para essas, a atividade de cuidado mais citada envolve o carinho e suporte emocional. Ambas contam, em primeiro lugar, com o apoio de parentes para o cuidado e autocuidado. Destacaram as instituições públicas como segundo apoio externo — possivelmente a escola dos filhos. 

Depois dos filhos, as urbanas apontaram o cuidado de pais ou mães. Em maior frequência, cuidam de somente uma pessoa e têm como segunda atividade transportar e acompanhar a pessoa cuidada em escolas, médicos ou em atividades sociais, culturais e esportivas. As rurais apontaram como segunda pessoa a ser cuidada o cônjuge, em sua maioria do gênero oposto. Em maior frequência, fazem o cuidado de duas pessoas, e a segunda atividade é fazer compras de itens básicos. O cuidado com o marido ou companheiro foi mais citado por mulheres entre 30 e 39 anos, seguido daquelas entre 25 e 29 anos, o que demostra a persistência de relações patriarcais nas novas gerações. 


Entre as rurais, 55% afirmam compartilhar o trabalho doméstico, o que aumenta para 62% entre as urbanas. Estas, em sua maioria, consideraram que realizam a maior parte do trabalho. Já as rurais consideraram que o dividem igualmente. Rurais e urbanas veem no marido a primeira pessoa com quem compartilham o cuidado. A segunda, para as mulheres urbanas, são outros parentes moradores do domicílio. 


Na pesquisa Sem Parar realizada durante a pandemia, foi evidenciada uma realidade em que as rurais — mais do que as urbanas — passaram a cuidar de alguém. A hipótese foi de que pessoas idosas ou com comorbidades foram enviadas para serem cuidadas nas áreas rurais, onde estariam mais protegidas. Por essa razão, identificamos as mulheres do  campo como uma reserva de cuidados para a sociedade em geral. Nesta edição da pesquisa de 2025, isso não foi constatado da mesma maneira. Embora as rurais cuidem um pouco mais do que as urbanas (52% frente a 48%), cuidam proporcionalmente de pais e mães (14% das rurais frente a 23% das urbanas), aqui considerados um indicador de pessoas idosas. Possivelmente, pessoas que necessitam de acompanhamento médico continuado têm maior acesso em meios urbanos. A reserva de cuidados, expressa em uma transferência de cuidados rural-urbano por meio da migração, pode ser considerada no auxílio de outras parentes moradoras do domicílio citado pelas mulheres urbanas. 


Nesta edição de 2025, chama a atenção que a relação conjugal seja descrita como uma relação de cuidado. A descrição das atividades que envolvem o cuidado tem como premissa a relação com pessoas que demandam mais cuidado. Nesse caso, caberia a pergunta: por que homens adultos e suficientes necessitariam de mais cuidado? 


Uma hipótese decorre da polissemia do termo “cuidado”. As mulheres podem entender cuidado como atenção e disponibilidade em relação ao outro, que são constituintes das relações, em especial das relações conjugais. Isso explicaria porque mais da metade das mulheres rurais considera que divide o trabalho de cuidados, em maior proporção com os maridos, e que esse cuidado se manifesta em carinho e apoio emocional, que se espera que seja recíproco. Entre as poucas respondentes que tem relações conjugais homoafetivas, suas parceiras também foram identificadas como pessoas recebedoras de cuidados. Essa resposta poderia ser diferente se o trabalho de cuidado fosse limitado à preparação de alimentos, outros afazeres domésticos e ao cuidado físico. 


Outra hipótese seria de uma maior presença, entre as mulheres rurais entrevistadas, de percepções tradicionais sobre família e relações conjugais. Segundo essas percepções, as mulheres garantem a segurança emocional de seus companheiros, que passa pelo “bom funcionamento” da casa, dando relevância, por exemplo, à atividade de compra de itens básicos. 

Feministas do movimento agroecológico e de trabalhadoras rurais atuam para o compartilhamento da responsabilidade sobre o trabalho doméstico e de cuidados entre as pessoas que convivem. 3 Assim como o trabalho das mulheres na roça não é “ajuda”, o trabalho de cuidado dos homens tampouco deveria ser considerado “ajuda”. Junto com comprometer homens adultos saudáveis com o cuidado, é preciso seguir experimentando relações em que o cuidado seja equilibrado em suas dimensões individuais (autocuidado) e coletivas. A vontade é ir além de um depoimento muito comum: “se eu peço, ele me ajuda”.



A percepção do compartilhamento do trabalho doméstico com os homens também foi detectada por uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo.4 Ainda que as mulheres sejam as principais responsáveis por esse trabalho, 35% afirmaram compartilhá-lo com outra mulher do domicílio e 32% compartilham com homens, sendo o marido ou parceiro o principal deles (21%). 


Podemos perceber que o cuidado é um assunto de família, em que os parentes são as primeiras referências de cuidado. Entre as rurais, quase 44% destacam os parentes como apoio para os cuidados. Mas, quando consideramos o cuidado como tudo o que é necessário para que a vida se sustente, se reproduza e seja boa,5 lutamos para que deixe de ser unicamente responsabilidade das mulheres, especialmente das mulheres racializadas, e para que seja desprivatizado, ou seja, deixe de ser resolvido apenas no interior das famílias.

Cuidado comunitário

As instituições públicas que formam parte do Estado são muito importantes no provimento de cuidados. Para as rurais entrevistadas, elas aparecem em segundo lugar como apoio que recebem (18%), enquanto, para as urbanas, aparecem em quarto lugar, depois de pessoas amigas e pessoas contratadas e muito próximo de instituições privadas. Ainda assim, as mulheres relatam discriminações nas escolas pelo fato de serem rurais, e identificam que as escolas também são responsáveis pelo fato de muitas jovens não verem futuro no meio rural, muito menos na agricultura. 


Entre as rurais, 8% reconhece o apoio de iniciativas comunitárias, proporção superior em relação às urbanas (2%). Elas também estão proporcionalmente mais envolvidas em iniciativas de cuidado comunitário: 48% das rurais frente a 35% das urbanas. Rurais e urbanas destacam atividades em espaços de cuidado e convivência, organizadas em maior proporção opor movimentos sociais, nos quais elas atuam como participantes. A maior parte das iniciativas começou antes da pandemia, buscou responder àquele momento e segue atuante. 


As outras iniciativas citadas com peso pelas rurais são as hortas comunitárias. Enquanto isso, as urbanas destacaram a distribuição de alimentos. As hortas comunitárias podem iniciar como um projeto produtivo, mas, muitas vezes, ganham um sentido de convivência e aprendizagem, onde questões como a violência doméstica ou a participação política das mulheres são debatidas e enfrentadas. As hortas mudam o território devido à diversidade de sua produção e das sementes e mudas que se espalham nos cultivos domésticos. Muitas hortas se iniciam em áreas degradadas e têm a fertilidade do solo recuperada ou construída pelo trabalho das mulheres, o que pode envolver a compostagem e outras práticas agroecológicas. 


As mulheres rurais contribuem com doações para a distribuição de alimentos e cozinha comunitária em proporções similares às urbanas, em que pese seus rendimentos serem inferiores. É possível que suas doações sejam de alimento in natura produzidos por elas, o que demonstra a existência de circuitos de distribuição solidária, os quais podem estar conectando rurais e urbanas. 


Mulheres rurais e urbanas compartilham inseguranças e cansaço, mas uma proporção maior de mulheres rurais se sente esperançosa e confiante. Isto pode vir de sua maior participação em movimentos sociais e da própria forma como esta pesquisa chegou para muitas delas: na conversa sobre a vida e os cuidados com uma companheira de jornada.

Pode ser também que, mesmo com todas as dificuldades e ataques aos territórios e comunidades rurais, aí ainda seja possível atingir maior conexão com os ciclos da vida e seus sentidos. Se for assim mesmo, podemos acreditar que a esperança brota nas margens.


 1 Cunha, Marina. (2025). Mercado de trabalho rural e urbano no Brasil, 2012-2022: uma análise das atividades agrícolas e não agrícolas. Revista de Economia e Sociologia Rural, 63, https://doi.org/10.1590/1806-9479.2025.289157pt.

2 Rody, Thalita e Telles, Liliam (orgs.). Caderneta agroecológica: o saber e o fazer das mulheres do campo, das florestas e das águas. Viçosa: Editora Asa Pequena, 2021.

3 Silva, Domênica; Pinheiro, Cristiane; Soares, Ailsa; Jalil, Laeticia. A campanha pela divisão Justa do trabalho doméstico-Uma questão de gênero. In Cadernos de Agroecologia Anais do XII Congresso Brasileiro de Agroecologia, RiodeJaneiro-v.19,n.1,2024.

4 Fundação Perseu Abramo  e SESC São Paulo. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado 3ª Edição. São Paulo: FPA e SESC SP, 2025  https://fpabramo.org.br/pesquisas/wp-content/uploads/sites/16/2025/09/Cap5_Trabalho_RemuneradoeNaoRemunerado.pdf

5 Orozco, Amaia. Cuidados: uma palavra em disputa política.  https://capiremov.org/analises/cuidados-uma-palavra-em-disputa-politica/


* Miriam Nobre é engenheira agrônoma e coordenadora da SOF Sempreviva Organização Feminista.